Anjos, macarrão
e coca-cola
Minha tristeza hoje, é
encontrar felicidade só por lugares onde já passei, isso muito pelo fato de que
nunca mais os encontrarei do jeito que eram.
“A
|
prendi a fazer pão e
gostava muito do que fazia, tinha um cachorro, um gato e uma caturrita. Até
mesmo no inverno, o sol entrava pela varanda e iluminava Beethoven, um
periquito que imitava a caturrita. Gostava de pescar no arroio que cortava
nossas terras e junto ia o Chaminé, era um cachorro esperto e me obedecia por caretas.
Além de querer voar, nessa época eu ainda lia gibi. Não tinha amigos que
morassem perto da minha casa, por isso a chata da minha prima era a única
companhia que eu tinha, a casa dela ficava a um grito da minha, ficavam
separadas por hortas, cocheiras, galinheiros, um açude para os gansos, tudo
cultivado e compartilhado por nossas famílias desde a época dos nossos avôs.
Por coincidência,
aniversariamos no mesmo mês, no ano em que ela fez quatorze anos, eu completei
onze e quatro meses, debochava dela
afirmando que eu era mais velho porque meu aniversário acontecia dois dias
antes que o dela. Ela se irritava facilmente e eu achava isso muito divertido, por isso
não perdia nenhuma chance de provocá-la. Aliás, as provocações eram sempre
recíprocas, às vezes ela me deixava maluco, tinha um jeito irritante de tirar
sarro da cara de quem fosse a vítima.
Ver aqueles ataques de fúria era a coisa mais divertida que eu tinha para fazer naqueles dias, ela batia forte, tinha um murro doído, com aqueles dedos pontudos mandava soco, tapas, beliscões em qualquer lugar que pegasse a descoberto, essa era a parte menos divertida. Às vezes isso passava do limite então ficávamos algum tempo de mal. (mais ou menos alguns minutos)
Ver aqueles ataques de fúria era a coisa mais divertida que eu tinha para fazer naqueles dias, ela batia forte, tinha um murro doído, com aqueles dedos pontudos mandava soco, tapas, beliscões em qualquer lugar que pegasse a descoberto, essa era a parte menos divertida. Às vezes isso passava do limite então ficávamos algum tempo de mal. (mais ou menos alguns minutos)
Na escola fechava o tempo constantemente. A
professorinha, iniciante de primeira viagem, fez o seu verdadeiro estágio com a
gente - eu e minha prima. Se por um lado, mesmo que em séries diferentes,
éramos estudiosos e investigativos, por outro, éramos encrenqueiros de
primeira, com aquele gênio dela, não passava nada de graça, muitas vezes eu era
inocente, mas alguma coisa acontecia conosco quando um ou o outro estava na
pressão, do contrário era o mesmo; meu pai que estava sempre fora, ria e dizia
que éramos uma matilha corporativa.
Ajudávamos nossos pais nas tarefas diárias de
um sítio, mas também brincávamos muito, estávamos acostumados a andar descalços
correndo pela sanga em dias quentes de verão, éramos terminantemente proibidos
de nadar no arroio sem a presença de um adulto, então quando estávamos sós nadávamos
pelados para que as roupas molhadas não deletassem nossa peraltice, além do
mais descobrimos que pelados deslizávamos na corrente com a facilidade e a
felicidade dos lambaris. De qualquer modo, ela sempre foi mais feliz sem
calcinhas, quando podia tirar não perdia tempo, era uma época mágica em que não
víamos nenhuma “diferença” entre nós.
Os cúmplices perfeitos eram nossos dois cães, eles não hesitavam
em entrar na água, nos acompanhavam em todos os momentos, foram testemunhas barulhentas
de pescarias e fritadas de lambaris, das tardes de chuva de inverno, quando o
vento minuano assoviava nos cantos da casa, fritávamos bolinhos, comíamos
pipoca vendo a sessão da tarde, como era bom rir de coisas tolas. Tivemos
momentos hilários como as guerras noturnas de travesseiros, numa batalha
ferrenha o meu arrebentou na costura e a tapou de penas de ganso, aquela noite
nós baguncemos demais. (castigo; uma semana sem brincar juntos), como sempre a
pena era negociada. Com muitas caras e bicos sempre conseguíamos reduzi-la.

Meu pai era caminhoneiro e
viajava muito, às vezes eu dormia na casa dela, às vezes ela dormia lá em casa,
sempre ficávamos vendo TV até tarde da noite. Aos domingos depois da missa
costumeira a gente ia pra casa onde o rango estivesse mais ao nosso gosto. O
suco preferido nas refeições era limonada, mas quando minha mãe fazia nosso
prato preferido, macarrão com bastante molho e queijo ralado, não podia faltar
uma coca-cola, eu ia na corrida lá embaixo na “venda” da vila buscar coca-cola
de litro em garrafa de vidro.

Sempre fui muito bom em
consertar coisas. Íamos a todo lado numa bicicleta velha que foi do meu pai, às
vezes eu ia na garupa e minha prima dirigia. Nossas casas ficavam no alto de um
morro, para chegar lá embaixo na vila, bastava
segurar no freio para não se perder nas curvas. Aquela velocidade suicida me
aproximava daquela carência sonhativa de flutuar. Caímos alguns tombos
fenomenais, e nos dias de chuva, às vezes era divertido, principalmente no
verão, ainda bem que nunca nos ferimos sério, afinal escoriações dos tipos
arranhões, unhas pretas, canelas feridas era mixaria.
O tempo passava e eu estava
ficando mais forte, mas ela ainda tinha mais fôlego, mais agilidade, e com aquelas pernas compridas, magras, quase
sempre me ganhava na corrida, depois ficava tirando sarro da minha cara.
Certo dia depois que
atravessamos um campo correndo me irritei com suas gozações, derrubei-a no chão
prendendo-a no solo com força, contato físico dessa natureza não era novidade
entre nós, fiquei por cima dela que ria muito, meu peito estava pressionando o
dela, eu podia sentir seu coração batendo forte. Ela continuava rindo,
arfando cansada da corrida e se debatia tentando se libertar do meu abraço.
De repente foi como se o céu se abrisse e eu visse Deus no meio das nuvens, debaixo de toda aquela aspereza havia uma doce fragilidade, com uma beleza que eu nunca antes tinha reparado, a sua boca, que diabos como é que nunca tinha percebido, como era bonita. Ela parou de se debater, e como que hipnotizados estivemos por alguns segundos vasculhando no fundo de nossos olhos, explicação para aquela estranha sensação de imãs humanos, ela deu um safanão e eu deixei ela sair, fomos caminhando pelo trilho entre as macegas como se tivesse tudo normal mas não estava, nunca mais estaria. Um bando de caturritas revoou sobre nossas cabeças fazendo uma algazarra no céu e se perdeu atrás dos eucaliptos, meu olhar seguiu ao longo das fileiras de pés de pessegueiros em flor, encontrou o horizonte recortado num cerro esmaecido de tão longe que estava, acima dele nuvens cor de rosa contrastando com o azul cobalto do céu, daquele céu que eu pensei ser propriedade nossa.
De repente foi como se o céu se abrisse e eu visse Deus no meio das nuvens, debaixo de toda aquela aspereza havia uma doce fragilidade, com uma beleza que eu nunca antes tinha reparado, a sua boca, que diabos como é que nunca tinha percebido, como era bonita. Ela parou de se debater, e como que hipnotizados estivemos por alguns segundos vasculhando no fundo de nossos olhos, explicação para aquela estranha sensação de imãs humanos, ela deu um safanão e eu deixei ela sair, fomos caminhando pelo trilho entre as macegas como se tivesse tudo normal mas não estava, nunca mais estaria. Um bando de caturritas revoou sobre nossas cabeças fazendo uma algazarra no céu e se perdeu atrás dos eucaliptos, meu olhar seguiu ao longo das fileiras de pés de pessegueiros em flor, encontrou o horizonte recortado num cerro esmaecido de tão longe que estava, acima dele nuvens cor de rosa contrastando com o azul cobalto do céu, daquele céu que eu pensei ser propriedade nossa.
Fiquei muito mexido com todas
aquelas novas sensações, sobretudo chateado. Foi o fim de um ciclo e prenúncio
de outra etapa em nossas vidas, o de contato com a realidade dos adultos estava
começando.
Quando sua mãe morreu
precocemente, já não convivíamos tanto tempo juntos, ela sofreu demais, eu
sentia sua dor de perto, muito de perto, porque também amava muito minha
tia.
Inconsolável meu tio arrendou as terras e eles foram para a cidade. E eu,
mais os cães ficamos totalmente sem chão lá naquele cafundó onde o Diabo perdeu
as botas.
No início as cartas eram
quase que diárias, depois foram rareando, então ela começou a namorar um cara
lá da cidade e elas não vieram mais.
Nosso paraíso ia dia a dia
se transfigurando também. Incentivados pelo governo, os agricultores começaram a
substituir varias culturas por plantação de fumo, degenerando tudo de bom que
cultivávamos.
Então, certo dia morreu o Chaminé e alguns dias depois o Ovelha
também se foi, ambos envenenados por agrotóxico lançados nas lavouras de fumo
dos vizinhos.
Três anos haviam se passado
até que eu tomasse uma decisão. Tirei minha mochila de viagem do armário
coloquei poucas coisas nela, só o essencial, dei um beijo na mãe e no pai, que
já tinha aposentado o caminhão e também fui pra cidade. Pelo retrovisor no
guidão eu via a poeira que levantava nas rodas da moto, ela ia cerrando minha visão das nossas terras, agora eu
precisava olhar pra frente mas não conseguia tirar os olhos das coisas que estava deixando para trás.
Eu a encontrei e ela estava
muito feliz, pra minha surpresa tinha se casado a coisa de um ano. Seu sorriso
agora era duplamente belo, estava impregnado de uma tranquila gravidez.
Fui embora para um lugar, em seguida outro lugar, depois mais outro, e outro.
Certa tarde, parado numa
aduana esperando para atravessar a fronteira, escutei uma carreta estacionar ao
lado da minha, dei uma espiada, era uma mulher na direção, então, pela segunda e
última vez na minha vida aconteceu de o céu parecer se abrir e eu ver Deus entre as nuvens, mas isso é outra
história.
Nesse dia cansei de rolar por aí e também me casei.
Durante os primeiros anos
volta e meia me surpreendia procurando distraído no fundo dos olhos de minha
esposa resquícios do olhar de minha prima. Ficava constrangido comigo mesmo, em
silêncio me perguntava: será que é normal um cara se apaixonar por uma prima
irmã?