domingo, 7 de outubro de 2012

FICÇÃO CABOCLA



 Anjos, macarrão e coca-cola
Minha tristeza hoje, é encontrar felicidade só por lugares onde já passei, isso muito pelo fato de que nunca mais os encontrarei do jeito que eram.

A
prendi a fazer pão e gostava muito do que fazia, tinha um cachorro, um gato e uma caturrita. Até mesmo no inverno, o sol entrava pela varanda e iluminava Beethoven, um periquito que imitava a caturrita. Gostava de pescar no arroio que cortava nossas terras e junto ia o Chaminé, era um cachorro esperto e me obedecia por caretas. Além de querer voar, nessa época eu ainda lia gibi. Não tinha amigos que morassem perto da minha casa, por isso a chata da minha prima era a única companhia que eu tinha, a casa dela ficava a um grito da minha, ficavam separadas por hortas, cocheiras, galinheiros, um açude para os gansos, tudo cultivado e compartilhado por nossas famílias desde a época dos nossos avôs.




Por coincidência, aniversariamos no mesmo mês, no ano em que ela fez quatorze anos, eu completei onze e quatro meses, debochava dela afirmando que eu era mais velho porque meu aniversário acontecia dois dias antes que o dela. Ela se irritava facilmente e eu achava isso muito divertido, por isso não perdia nenhuma chance de provocá-la. Aliás, as provocações eram sempre recíprocas, às vezes ela me deixava maluco, tinha um jeito irritante de tirar sarro da cara de quem fosse a vítima.
Ver aqueles ataques de fúria era a coisa mais divertida que eu tinha para fazer naqueles dias, ela batia forte, tinha um murro doído, com aqueles dedos pontudos mandava soco, tapas, beliscões em qualquer lugar que pegasse a descoberto, essa era a parte menos divertida. Às vezes isso passava do limite então ficávamos algum tempo de mal. (mais ou menos alguns minutos)
 Na escola fechava o tempo constantemente. A professorinha, iniciante de primeira viagem, fez o seu verdadeiro estágio com a gente - eu e minha prima. Se por um lado, mesmo que em séries diferentes, éramos estudiosos e investigativos, por outro, éramos encrenqueiros de primeira, com aquele gênio dela, não passava nada de graça, muitas vezes eu era inocente, mas alguma coisa acontecia conosco quando um ou o outro estava na pressão, do contrário era o mesmo; meu pai que estava sempre fora, ria e dizia que éramos uma matilha corporativa.




 Ajudávamos nossos pais nas tarefas diárias de um sítio, mas também brincávamos muito, estávamos acostumados a andar descalços correndo pela sanga em dias quentes de verão, éramos terminantemente proibidos de nadar no arroio sem a presença de um adulto, então quando estávamos sós nadávamos pelados para que as roupas molhadas não deletassem nossa peraltice, além do mais descobrimos que pelados deslizávamos na corrente com a facilidade e a felicidade dos lambaris. De qualquer modo, ela sempre foi mais feliz sem calcinhas, quando podia tirar não perdia tempo, era uma época mágica em que não víamos nenhuma “diferença” entre nós.
Os cúmplices perfeitos eram nossos dois cães, eles não hesitavam em entrar na água, nos acompanhavam em todos os momentos, foram testemunhas barulhentas de pescarias e fritadas de lambaris, das tardes de chuva de inverno, quando o vento minuano assoviava nos cantos da casa, fritávamos bolinhos, comíamos pipoca vendo a sessão da tarde, como era bom rir de coisas tolas.  Tivemos momentos hilários como as guerras noturnas de travesseiros, numa batalha ferrenha o meu arrebentou na costura e a tapou de penas de ganso, aquela noite nós baguncemos demais. (castigo; uma semana sem brincar juntos), como sempre a pena era negociada. Com muitas caras e bicos sempre conseguíamos reduzi-la.
Meu pai era caminhoneiro e viajava muito, às vezes eu dormia na casa dela, às vezes ela dormia lá em casa, sempre ficávamos vendo TV até tarde da noite. Aos domingos depois da missa costumeira a gente ia pra casa onde o rango estivesse mais ao nosso gosto. O suco preferido nas refeições era limonada, mas quando minha mãe fazia nosso prato preferido, macarrão com bastante molho e queijo ralado, não podia faltar uma coca-cola, eu ia na corrida lá embaixo na “venda” da vila buscar coca-cola de litro em garrafa de vidro.

Sempre fui muito bom em consertar coisas. Íamos a todo lado numa bicicleta velha que foi do meu pai, às vezes eu ia na garupa e minha prima dirigia. Nossas casas ficavam no alto de um morro,  para chegar lá embaixo na vila, bastava segurar no freio para não se perder nas curvas. Aquela velocidade suicida me aproximava daquela carência sonhativa de flutuar. Caímos alguns tombos fenomenais, e nos dias de chuva, às vezes era divertido, principalmente no verão, ainda bem que nunca nos ferimos sério, afinal escoriações dos tipos arranhões, unhas pretas, canelas feridas era mixaria. 




O tempo passava e eu estava ficando mais forte, mas ela ainda tinha mais fôlego, mais agilidade,  e com aquelas pernas compridas, magras, quase sempre me ganhava na corrida, depois ficava tirando sarro da minha cara.
Certo dia depois que atravessamos um campo correndo me irritei com suas gozações, derrubei-a no chão prendendo-a no solo com força, contato físico dessa natureza não era novidade entre nós, fiquei por cima dela que ria muito, meu peito estava pressionando o dela,  eu podia sentir seu coração batendo forte. Ela continuava rindo, arfando cansada da corrida e  se debatia tentando se libertar do meu abraço. 




De repente foi como se o céu se abrisse e eu visse Deus no meio das nuvens, debaixo de toda aquela aspereza havia uma doce fragilidade, com uma beleza que eu nunca antes tinha reparado, a sua boca, que diabos como é que nunca tinha percebido, como era bonita. Ela parou de se debater, e como que hipnotizados estivemos por alguns segundos vasculhando no fundo de nossos olhos, explicação para aquela estranha sensação de imãs humanos, ela deu um safanão e eu deixei ela sair, fomos caminhando pelo trilho entre as macegas como se tivesse tudo normal mas não estava, nunca mais estaria. Um bando de caturritas revoou sobre nossas cabeças fazendo uma algazarra no céu e se perdeu atrás dos eucaliptos, meu olhar seguiu ao longo das fileiras de pés de pessegueiros em flor, encontrou o horizonte recortado num cerro esmaecido de tão longe que estava, acima dele nuvens cor de rosa contrastando com o azul cobalto do céu, daquele céu que eu pensei ser propriedade nossa.
Fiquei muito mexido com todas aquelas novas sensações, sobretudo chateado. Foi o fim de um ciclo e prenúncio de outra etapa em nossas vidas, o de contato com a realidade dos adultos estava começando.




Quando sua mãe morreu precocemente, já não convivíamos tanto tempo juntos, ela sofreu demais, eu sentia sua dor de perto, muito de perto, porque também amava muito minha tia.

Inconsolável meu tio arrendou as terras e eles foram para a cidade. E eu, mais os cães ficamos totalmente sem chão lá naquele cafundó onde o Diabo perdeu as botas.
No início as cartas eram quase que diárias, depois foram rareando, então ela começou a namorar um cara lá da cidade e elas não vieram mais.
Nosso paraíso ia dia a dia se transfigurando também. Incentivados pelo governo, os agricultores começaram a substituir varias culturas por plantação de fumo, degenerando tudo de bom que cultivávamos. 



Então, certo dia morreu o Chaminé e alguns dias depois o Ovelha também se foi, ambos envenenados por agrotóxico lançados nas lavouras de fumo dos vizinhos.
Três anos haviam se passado até que eu tomasse uma decisão. Tirei minha mochila de viagem do armário coloquei poucas coisas nela, só o essencial, dei um beijo na mãe e no pai, que já tinha aposentado o caminhão e também fui pra cidade. Pelo retrovisor no guidão eu via a poeira que levantava nas rodas da moto, ela ia cerrando  minha visão das nossas terras, agora eu precisava olhar pra frente mas não conseguia tirar os olhos  das coisas que estava deixando para trás.


 
Eu a encontrei e ela estava muito feliz, pra minha surpresa tinha se casado a coisa de um ano. Seu sorriso agora era duplamente belo, estava impregnado de uma tranquila gravidez.



Fui embora para um lugar, em seguida outro lugar, depois mais outro, e outro.
Certa tarde, parado numa aduana esperando para atravessar a fronteira, escutei uma carreta estacionar ao lado da minha, dei uma espiada, era uma mulher na direção, então, pela segunda e última vez na minha vida aconteceu de o céu parecer se abrir e eu ver  Deus entre as nuvens, mas isso é outra história.




Nesse dia cansei de rolar por aí e também me casei.
Durante os primeiros anos volta e meia me surpreendia procurando distraído no fundo dos olhos de minha esposa resquícios do olhar de minha prima. Ficava constrangido comigo mesmo, em silêncio me perguntava: será que é normal um cara se apaixonar por uma prima irmã?




quarta-feira, 22 de agosto de 2012

O bêbado e a Equilibrista









5 comentários:

Lydia Goes disse...
ahhhhhhh Ney seu vagabundo.. quero mais!! mto foda pô!

ps: mta saudade, mas mta saudade da tua pessoa =)
Ney disse...
Vou andadando por ai;
debaixo da aba do meu chapéu, de revesgueio vislumbro um novo céu.
Embaixo da sola das minhas botas transcorre insolente essas coisa que eu me refiro pintando. bjs!
Cássia Correa disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Cássia Correa disse...
Tio Ney : )
Muito bom, adorei!!
E eu, equilibrando dia a dia o copo sobre a mesa sempre esqueço de sem querer, cair do parapeito da janela, só para ter certeza de que estou inteira!
Me fez "pensarpoesias" beijos
Ney disse...
Oi sobrinha;É isso que me refiro,afinal o que é uma quedinha para quem nasceu pra voar!
Abraços


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